Monday, October 02, 2006

Na Fila

NA FILA

- Maria Dolores Silva de Oliveira... É você?

- Sim, sou eu.

- Você já preencheu o formulário médico, bem?

- É êsse aqui? – disse Da. Maria apontando para um formulário amarelo em suas mãos.

- Pode preencher aí também viu! – disse a recepcionista indicando a secção no final da primeira página.

- Ah... aqui também?

- É... êste também precisa preencher porque o doutor precisa saber disso aí... tá?

- Ah, tudo bem! – respondeu Da. Maria em tom conciliatório. Com o formulário em mãos, Da. Maria retornou-se a seu assento, uma cadeira plástica de cor laranja, junto a senhores, senhoras, algumas crianças e outras pessoas jovens que aguardavam também a vez de serem atendidos. Já próximo das duas horas da tarde algumas pessoas se mostravam inquietas, porém a maioria, e principalmente os mais idosos, resignados à uma espera que já lhes tornara rotina, aguardavam com paciência.

- O que é isto aqui? - perguntou Da. Maria à senhora ao seu lado com a qual já há muito puxava conversa.

Olhando o formulário, a senhora mais idosa respondeu: - Este é o seu tipo de sangue. Se a senhora não sabe deixe sem responder. Depois eles fazem um exame de sangue para saber.

Prosseguindo, Da. Maria recordou-se da senhora que lhe apanhou cedo de manhã e lhe trouxe até alí: - Se eu tivesse que pegar o ônibus, não tinha dado tempo de pegar senha hoje. Essa pergunta aqui também tem que respondê? - Seus cabelos grisalhos, expressão facial reluzente mas pouco inquisitiva, mãos firmes e traços corpóreos fortes revelavam uma vida de trabalhos domésticos intensos, porém de natureza social humilde. Da. Maria poderia ter sido uma lavadeira, costureira ou até mesmo empregada doméstica.

- Essa pergunta é para saber se a senhora tem alergia. - mais uma vez a senhora ao lado, olhando o formulário ajudou Da. Maria a preencher corretamente. – O seu marido te trouxe aqui? – indagou a senhora idosa.

- Que marido que nada. Meu marido já foi trabalhá cedo. Ele trabalha de pedreiro, tem que chegá no serviço às sete. E pra chegá lá ele pega o ônibus da Vila Carrão depois o Bonfim. Então tem que sair cedo, né? Foi uma muié lá dos crente que veio me buscá.

- Da igreja dos crentes? - perguntou a senhora.

- É... porque a minha fia é crente, né, a senhora sabe. Lá na igreja dela tem essa muié que ajuda os pobre. Daí então minha fia veio Domingo a tarde e eu tava falando que tinha que ir no INPS esta semana... mais não sabia se ia dá tempo de chegá cedo para pegá senha. Daí então minha fia falou: “Ai, mãe, quem sabe eu te ajudo. Mais eu não posso perder dia de trabalho se não eles me descontam muito no dia de pagamento. Mais tem uma senhora na minha igreja que talvez pode ajudar.” Ai então ela veio, né.

A senhora, ouvia atentamente mas demonstrava pouca surpresa: – Os crentes, são bons né, porque eles ajudam as pessoas. Perto da minha casa tem uma Assembléia, e eles também ajudam. Mas lá é tudo pobre também, então num da né? - Da. Maria agora já pouco atenta ao formulário, estava mais interessada na conversa que evoluia.

- Maria Dolores Silva de Oliveira. - chamou a recepcionista.

- Oi?... Ai Nossa Senhora, eu já tava quase esquecendo. - levantando-se, dirigiu-se ao guichê e entregou o formulário amarelo à recepcionista, a qual verificou rapidamente os campos preenchidos.

- Tudo certinho, tá. Agora, a senhora pode se assentar que daqui a pouco o doutor vai atender, tá?

Da. Maria, retornando a seu assento, demonstrava paciência, embora já se encontrasse ali por mais de sete horas. Uma criança chorava ao fundo, alguns senhores resignados colocando-se próximos a porta de entrada faziam conversa para passar o tempo, senhoras de meia idade assentadas na longa carreira de cadeiras plásticas prestavam-se atentas aos movimentos esperando por sua vez de serem atendidas.

- Parece que a dona é dessas de classe viu! - Da. Maria confidenciou a sua nova amiga.

- Mais ela é dos crente? - perguntou a senhora de mais idade.

- A igreja da minha fia tem umas pessoas de classe, né. Num é como as igrejinha lá onde eu moro. A igreja dela é la perto da Faculdade grande, né... acho que lá tem mais gente que pode mais, né.

- A Faculdade é aquela grande lá pro lado do terminal do ônibus, aquele lá longe?... Iche, se for aquela, nossa, lá é tão grande. Tem um hospital lá que atende também.

- É lá mesmo, porque quando eu fiz cirurgia dos rin, minha fia me levou naquele hospital. Então... mais como eu ia dizendo, né, essa muié... então ela é de classe, né. Então ela veio na minha casa. Mais ficava ruim de eu oferecê café... porque a senhora sabe né a gente é pobre né!

- Ah, minha filha... não tem problem não. Café é café em casa de rico ou de pobre é tudo igual.

- Não, eu sei, mais como que eu vou oferecê café pra uma dona tão chique?

- Ah, eu não importo não. Uma vez tambem a minha patroa que eu tinha… agora não né, porque eu já sou aposentada… mais eh... ela veio uma vez na minha casa.

- Então… mais essa dona da igreja da minha fia... diz que ela tem bastante fio, né. Aí, ela veio e me buscou bem de manhãzinha mais a gente fica sem jeito né... porque a gente num sabe, num sabe se a dona vai achar ruim ou se vai repará.

- Olha, milha filha, - disse a senhora de mais idade: - não se importe não, o que vale é seu orgulho. A senhora tem que se orgulhar, no bom sentido é claro... a senhora tem que se orgulhar de sua casa mesmo que seja pobre.

- É... acho que senhora é que esta certa, viu. A minha fia também me fala disso. Mais essa dona que me trouxe ela é tão chique. - disse Da. Maria.

- O que que ela faz? - perguntou a senhora. A este ponto, duas outras mulheres sentadas próximas das duas conversadeiras, se esquivavam atentas à conversa, procurando não perder nada.

- Num sei. Diz que o marido dela é doutô e trabalha naquele hospital grande perto da Faculdade. Mais ele também é dum otro hospital.

- Mas se ela é chique... mas porque ela veio trazer a senhora aqui? -continuou indagando a senhora de mais idade.

- Ah, num sei não. É porque a minha fia pediu pra ela. - disse Da. Maria.

- A senhora já foi na igreja dos crente da sua filha? - indagou a senhora, já um tanto curiosa a respeito dessa dona chique.

- Não… Nossa Senhora!… não, eu nunca fui lá não. Eu sou católica, a senhora sabe, a gente que é católica num vai na igreja dos crente.

- É, mas esta mulher chique não se importou de ajudar a senhora que é católica, né? replicou a senhora.

- É verdade ela num se importô não. E ela é tão boa a senhora nem credita. Ela perguntou de mim, perguntou do meu marido… eu nunca conhecia essa dona. Num sei se minha fia falô pra ela alguma coisa, né. A senhora acredita que ela até viu meu cachorro no quintal, depois ela tava falando que tinha um cachorro igual! - surpresa frente a seu próprio humor, caiu numa risada desembaraçada mas comedida. A senhora mais idosa se entretia mais e mais com o assunto arriscando também uma risada.

As duas conversadeiras se deleitavam em decifrar esta aparição misteriosa e caridosa, quando uma das mulheres sentadas ao lado que a esse ponto já estava completamente se inteirada do assunto, interjeitou: - Os crente, a gente tem que tomar cuidado, sabe. Porque depois eles querem que a gente vai na igreja deles.

Da. Maria se recompondo de sua risada, se ajeitou na cadeira e ainda um tanto desconcerta, virou-se em direção a mulher que entrou na conversa das duas. Com uma expressão de surpresa, sem ter entendido o que a mulher disse, encarou-lhe por alguns segundos, até que sua nova amiga, a senhora de mais idade, interpelou: - Mais que crentes são esse que a senhora conhece?

Mais nova que as duas, de cabelos claros, portando uma bôlsa branca, e vestida em trajes mais modernos, a moça retrucou: - Pois a senhora não sabe? Esses crentes sempre querem que a gente vai na igreja deles. Eu já conheço bem. Hoje eles são bonzinho, conversam, amanhã já vão convidando para ir na igreja e depois quando a gente menos espera já virou crente também. Eu não... não quero nada com isso.

A senhora mais idosa, notadamente de mais experiência e com mais auto-confiança, percebendo a desconfiança da mulher mais jovem, assegurou-lhe: - Não, não é bem assim. Os crentes são bons... eu conheço lá, os crentes da Assembléia, eles ajudam as pessoas... e se for na igreja deles que que tem?... eu não importo não. Vê aí, essa dona que ajudou a senhora. Custava ela dizer pra sua filha que ela estava ocupada? ... já pensou sair lá dos cantos da Faculdade e vir até aqui nesse lugar longe de tudo... é só quem quer ajudar mesmo.

Da. Maria, sentindo o apoio da senhora experiente, realçou: - Pois é, e essa dona... ela até me perguntou em que igreja eu vou. Ai, eu disse que ia na Católica né, porque eu sabia que ela era dos crente, mais eu num vô fala mentira.

- Aí, ela me deixou aqui – continuou Da. Maria – e quando eu estava saindo do carro dela, ela perguntou como eu ia voltá pra casa. Então... então eu falei que vô de ônibus mesmo por que pra voltá num tem problema né? Dificir mesmo é chegá aqui... mais pra voltá a gente dá um jeito. Mais, a senhora credita que a dona até me deu uns passe pro ônibus. Então, ela falô que tinha passe da empregada dela e me pergunto e me deu dois passe. Ai... a gente até fica sem jeito né. Mais a senhora sabe a gente é pobre e tem que aceitá né. Mais é uma muié tão boa essa dona. Minha fia que tá com sorte né, porque senhora vê, é lá na igreja dela né, e aí tem essa dona lá, e aé essa dona ajuda as pessoas. Bem, eu num sei se na igreja dela tem pobre mais a gente nunca sabe, tem tanta gente que precisa de ajuda... ai meu Deus.

- Pois é mesmo, tem muita gente... mais cada um precisa fazer o que pode não é mesmo? - acrescentou a senhora de idade.

- É, mas a gente sempre tem que ficar de olho porque se não as pessoas tiram proveito. - disse a mulher jovem.

- Bem, essa dona, ela disse que tinha fio também. Parece que é bem uns sete ou mais num sei direito não... mais ela me perguntou se eu tinha fio. Aí eu contei né. Eu contei pra ela que o João tá na cadeia mais não foi bem culpa dele não... e ela queria saber se ele tem familia. Aí, eu falei né... eu falei pra ela da Mariza, a muié do João. Porque a senhora sabe né... o João coitado... ele até é bem trabalhadô... mais aí ele se meteu com uns cara aí .... e coitada da Mariza, com néné, precisando de dinheiro... aí vai... vai... agora tá na cadeia.

- A senhora falou tudo isto pra dona? – perguntou-lhe a moça.

- É claro, ela queria sabê. - respondeu Da. Maria. - Eu num queria ficá falando tudo da minha vida, os meu problema... mais fazê o que, ela queria sabê, aí eu num importo não. Aí, então ela queria sabê quantos anos tem o nenê. Ai, Nossa Senhora... eu falei pra ela... nem é ano não! O muleque tem uns oito meis. A Mariza traiz ele lá em casa, aí ela dexa ele lá só um pouco as vezes que ela tem que i na venda, né. Aí, a dona falô que quando ela tinha os fio dela que era nenê... aí as pessoa da igreja sempre ajudava né. Ela até falo que ia traze uns leite pro nenê mais num sei não.

- Vai nada. Eu já conheço essas mulheres. Elas são tudo metida. É tudo assim de veneta sabe. - a jovem se punha indignada, com pouca paciência mas relutante em abandonar a conversa.

- Não sei não. Mas parece que esta senhora é das crente que ajuda as pessoas. - acrescentou com sabedoria, a senhora de idade.

Da. Maria, confiante em sua narrativa e sentindo-se agradecida à senhora misteriosa que lhe trouxe até o posto de saúde, prosseguiu: - Ela tava bem vestida também sabe. Ela tinha assim, um vestido desses bem bonito, né. Nem sei que tipo é. Eu já fui costureira né, mais esse vestido era uns diferente. Ela me contou tudo da família dela também... mais ela só num falô nada do marido dela. É porque minha fia falô que ele é doutô né, se não eu nem sabia.

- E a senhora vai ficar aqui enfrentando essa fila maldita? Ai, se fosse eu, eu pedia pra ela me leva lá pro outro hospital... não pra esta miséria aqui! - sua paciência a expirar, a jovem se levantou e se dirigiu a porta para tomar um pouco de ar fresco.

Da. Maria não se intimidou: - Não... num é não... eu tinha que vim aqui mesmo... sabe... porque a minha ficha já tá aqui... e depois também pra pegá guia eu tenho que vi aqui mesmo. A minha fia disse que um dia numa festa da igreja a fia dessa dona feiz um bolo pra todo mundo. Minha fia também disse que a dona é gente boa mesmo. Eu credito... eu falei tudo pra dona, sabe. Magina, falei até do João coitado... ai, se ele num saí da cadeia num sei não. Então... mais aí a dona queria sabê do João também. E o que eu vô fala pra ela do João? Num tem nem o que falá né porque o coitado tá preso. Num foi culpa dele, né. Aí... ai... iche... sabe o que a dona falo?... Agora eu lembrei... A dona falo que ia rezá pro João. Mais eu num sei, eu falei pra ela que a gente é católico né... mais aí ela falô que ia rezá. Mais aí eu falei pra ela que o padre podia reza. Ai ela perguntou: “E então o padre já rezou pro seu filho”? Eu falei que não porque a senhora sabe né, o padre num fala muito com a gente... mais ele é dos que reza também. A gente num tem assim muita intimidade pra falá com o padre mais eu sei que ele é dos que reza.

- O padre da minha igreja não reza pra ninguém não. - confessou a senhora de idade.

Da. Maria estava gostando da conversa, a mesma se tornara agora quase que um monólogo: - Mais essa dona ela falô pra rezá pro João mais ela falava outra coisa. Num era reza não, mais... qué dizê... é a mesma coisa né... mais ela falava uma otra coisa.

- Orar! Disse a senhora idosa.

- É isso mesmo, - disse Da. Maria. - Os crente fala orá, né. Mais é rezá. Então, aí a dona falô que ia rezá pro João. Não... ela falo que ia orá pro João... ai num sei, parece mais facil falá rezá, né.

- Maria Dolores Silva de Oliveira. – chamou a recepcionista.

- Oi, sou eu. – disse Da. Maria.

- É você bem? - perguntou a recepcionista.

- Sou eu mesma. – reafirmou Da. Maria.

- Pode entrar viu bem! O doutor vai te atender agora.

- Ai... até que enfim chegou a minha veiz. – e virando-se para a amiga de mais idade começou a despedir-se: - Tá... té logo, viu. Obrigada, viu!

- De nada minha filha. Mais não tem de que não... vai com Deus. – disse a senhora.

- Té logo.

Da. Maria levantou-se e quando já se dirigia à porta de entrada, a senhora de idade indagou-lhe: - Oi... essa dona que te trouxe aqui, como ela chama hem?

- Ah, é uma tal de Da. Nélia, né. Ela é lá dos Lane, né... aqueles que é parente do hospital, daquele otro. – disse Da. Maria.

- Ah! – respondeu a senhora de idade.

- Maria Dolores Silva de Oliveira. – chamou a enfermeira, em tom firme, quase autoritário: - Por aqui... venha!



Edward Lane – Decatur April 2006.